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Os anos, de Virginia Woolf, e O Prazer do Texto, de Roland Barthes




   Para Roland Barthes, em O Prazer do Texto, há uma diferença entre o texto de prazer e texto de fruição. O texto de prazer é "aquele que contenta, enche, dá euforia; aquele que vem da cultura, não rompe com ela, está ligado a uma prática confortável de leitura (BARTHES, 1996, p. 20-21). E o texto de fruição é "aquele que põe em estado de perda, aquele que desconforta [...], faz vacilar as bases históricas, culturais, psicológicas do leitor, a consistência de seus gostos, de seus valores e de suas lembranças, faz entrar em crise sua relação com a linguagem". (BARTHES, 1996, p. 21).
   
   Em Os Anos, que inicialmente durante sua criação tinha como título The Pargiters, acompanha durante cinco décadas (1880 a 1930) as transformações da família Pargiter. São eles os personagens que irão sofrer as ações de cinquenta anos de um mundo que passará por guerra, por transformações  sociais e tecnológicas ( a partir dos anos que se seguem depois de 1900, Virgínia já usa a imagem dos autômatos, objetos que causaram enorme revolução tecnológica e filosófica na virada do século, para descrever comportamentos humanos). Também demonstra com uma habilitante imensa as falhas de comunicação, que poderá ser confundida pelo leitor como falta de atenção da autora, quando representa o exato contrário: entre os intervalos dos anos que representam cada capítulo da obra, há personagens que se contradizem em seus discursos. Embora tenha como núcleo central a família Pargiter, o romance apresenta também muitos outros personagens sem muita importância para a continuidade do romance, embora tenham grande importância para acontecimentos específicos de capítulos únicos, depois dos quais nunca mais serão mencionados, o que revela também o jogo social de relações modernas, refletindo fatos de nossa vida social como nós a experimentamos, onde uns e outros vão ficando para trás, esquecidos como peças já não importantes.

    Por essas características, Os Anos não é um livro de fácil leitura. É preciso, como Barthes diz, uma atenção redobrada que só um texto de fruição é capaz de proporcionar: o número extenso de personagens, suas mudanças, que são aspectos de grande importância no romance, e sobretudo a exposição ao nível "atômico" dos sentimentos e dos costumes que Virgínia Woolf ilustra para o leitor, desde passagens em que um dos irmãos Pargiter, Martin, observa um tanto ébrio depois de uns goles de vinho as ruas e nota com surpresa como as pessoas se acostumaram rápido aos carros motorizados, e o quanto era aquilo engraçado no início, quando poucos saíam as ruas dirigindo automóveis ao invés de carruagens, até passagens como o capítulo referente a 1914, eclosão da Primeira Guerra Mundial, onde os Pargiter, personagens da alta classe londrina, não parecem interessados em questões políticas, expressando provavelmente uma real ignorância a esses aspectos por parte das classes ricas em meio a sua ascensão. Só nos capítulos seguintes, dois anos depois, é que, imersos nas consequências da Guerra, há a passagem em que eles mencionam numa conversa a tentativa de debater sobre a vida de grandes personalidades, embora confessem não conseguir fazê-lo por ignorância.

   Há, por outro lado, passagens valiosas onde seus personagens vislumbram as ações do tempo, que passa sem pedir licença. Parafraseando outra escritora, esta brasileira, Lispector, que enquanto viva fora comparada a Virginia Woolf, "pelo orgulho de estar viva" as personagens de Os Anos se sentem naquele impulso natural de dar continuidade as suas condições existentes, vislumbrando diante disso enormes inseguranças:

"De novo foi possuída pela sensação de estar à bordo. (Do que? De um navio? Da vida?) [...] As coisas não podem continuar indefinidamente, pensou. As coisas passam, as coisas mudam, pensou, os olhos postos no teto. Para onde vamos? Pra onde? Para onde...? As mariposas voejavam loucas, loucas. O livro caiu no chão. [...]  Depois fez um esforço, virou-se e soprou a vela. A escuridão reinou." (p. 254)

ou

"Já não sou uma criança, pensou, os olhos na luz sob sua cápsula azul. Os anos nos transformam; destroem coisas, amontoam coisas, aborrecimentos, cuidados. Ali estavam os seus de novo. Frases soltas lhe vinham outra vez à memória; e cenas. Viu-se outra vez fazendo subir o estore de um repelão; viu os pelos no queixo da Tia Warburton.  Viu as mulheres no ato de se levantarem num só movimento e os homens entrando pela porta em fila indiana. Suspirou ao virar-se no leito. Todos se vestem mesma maneira, pensou, e tem a mesma vida. E qual a vida certa, pensou irrequieta, dando voltas na cama, e qual a errada? E virou-se para o outro lado." (p. 323)
    
   Para Barthes, a leitura é um jogo entre escritor e leitor - sem público, a obra morre antes de nascer - e o prazer do texto (prazer do texto e texto de prazer são coisas distintas) se dá num "espaço" entre o texto e o processo de leitura por parte do leitor, onde, dentro deste "espaço" pode brotar as infinitas formas de recepção do texto por aquele que lê, que será sempre um leitor diferente dos outros leitores, e que nesses "espaços" encontrará afetações infinitas vindas do texto. Virgínia Woolf, com sua técnica de fluxo de consciência consegue nos proporcionar incontáveis formas de sentir esse espaço declarado por Barthes, e o faz exatamente por "fotografar" partículas de sensações e costumes que nós, leitores, comumente sentimos e que por eles somos atingidos em nosso convívio cotidiano. Embora ela tenha escrito outros cinco romances, Os Anos é tido pela autora como o mais trabalhoso de todos durante seu processo de escrita.

   Por fim, decidi fazer um guia de personagens para quem se aventurar a começar a leitura de Os Anos. Buscando na internet. não encontrei guia ou orientação de leitura do romance, e amigos que tentaram ler o livro ou outros leitores em suas resenhas pela internet disseram desistir por não conseguirem acompanhá-lo. Segue então um guia de personagens. Eles estão divididos por sequência de aparição no livro, bem como, entre parênteses há dicas de como identificá-los quando eles forem mencionados no texto. Os personagens mais frequentes naturalmente são aqueles com o sobrenome Pargiter. Para nível de curiosidade, decidi colocar a idade de cada personagem no primeiro capítulo, de modo que o leitor possa fazer as contas de suas idades nos capítulos seguintes:

Personagens:

1880
Coronel Aber Pargiter (patriarca)
Rose Pargiter (matriarca, falece no Cap. 1)
Eleanor Partiger (filha mais velha, 20 anos em 1880)
Milly Partiger (filha, 12 anos em 1880)
Delia Partiger (filha, 10 anos em 1880)
Morris Pargiter (filho mais velho, advogado)
Rose Pargiter criança (filha, entre 7 e 11 anos)
Martin Pargiter (filha, entre 7 e 11 anos anos)
Edward Pargiter (filho, apox. 18 anos)

Kitty Malone (prima dos Pargiter por quem Edward é apaixonado)

1891
Celia Pargiter (noiva de Morris Pargiter, o advogado)
Sir Digby Pargiter (irmão mais novo do patriarca dos Pargiter)
Eugénie Pargiter (noiva de Sir Digby, irmão do patriarca dos Pargiter)
Maggie Pargiter (filha de Eugénie e Digby)
Sara Pargiter (ou Sally, Filha de Eugénie e Digby)

1911
René/Renny (casa-se com Maggie Pargiter)
North, Peggy e Charles (filhos de Celia e Morris Pargiter)
Sir William Whatney (flerte de Eleanor)

1913
Crosby (Governanta dos Pargiter)

1914
Lady Lasswade (prima de Kitty Pargiter Lasswade)
Ann Hiller e Tony Ashton (participaram de um jantar de Sra. Malone em 1880)

1917
Nicholas (amigo gay polonês-americano de Eleanor)

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