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Desfazer-se do corpo do romance e mostrar a voz que o antecede.

O romance clássico é construído por uma mesma estrutura, tendo por base fatos e personagens. Quando narrados em primeira pessoa, há a presença dos fatos e de uma estrutura que o organiza o enredo; há em alguns romances um narrador. Em As Ondas , o sétimo romance de Virgínia, a condução é toda feita por vozes. São seis: Rhoda, Susan, Neville, Jinny e Louis - e um espectro: Percival, um ponto de encontro, algo correlativo ao que o farol de Ao Farol era para os Ramsay. Em determinadas passagens, Percival é mesmo um ponto quase a ser alcançado, como o farol do romance anterior era um lugar a ser alcançado. É também o único que não é uma voz, mas um personagem. Voltando a estrutura do romance. É importante considerar que este seja conduzido não por personagens com corpos, mas por vozes de personagens, quase sem corpos. Essa imagem nos serve para pensar que Virginia abandonou o corpo da literatura, suas formas clássicas, seus parâmetros, para trazer em As Ondas o que é anterior à forma. Vir

Amanhã iremos ao passado. Ao Farol, de Virgínia Woolf.

Ao Farol, o quinto romance de Virginia Woolf, me ensina, entre tantas coisas, duas que aqui eu destaco: a primeira é que se atravessa não apenas o que está adiante, no futuro. Atravessa-se também, e várias vezes, o que está no passado. Fazendo uma torção no tempo: para seguir adiante, rumo ao futuro, a estrada a ser atravessada cruza o passado. A segunda é sobre os caminhos que um sujeito toma para tratar seu sofrimento. Virgínia, até a conclusão da escrita do romance, alucinava ouvindo a voz da mãe chamando-a. É após conclui-lo que escreve em seu diário que as vozes cessaram. Detenhamo-nos aqui, consideremos a grandeza deste feito, que é em si uma grande lição para um discurso científico que hoje considera os fenômenos psíquicos reduzidos a um tratamento de mediação puramente química. A escrita, e sobretudo a letra, serviu de matéria concreta para uma amarração do que inundava Virginia por meio das vozes da mãe morta. A amarração da qual a escrita de Ao Farol é efeito entretanto não é

O fantasma do tempo

Em Ghost Story o fantasma de um músico recém falecido retorna para sua casa, onde morava com sua esposa. Esta não é uma história de terror, apesar do título. O artifício que David Lowey, diretor e roteirista usa para solucionar a questão, é representar o fantasma como aqueles dos desenhos animados, cobertos por um pano, com dois furos no lugar dos olhos. O filme tem um tom poético, um ar melancólico, mas sustentado por um bom ritmo, mesmo com cenas contemplativas. Ele está em todas as cenas, a maioria delas se passa dentro da mesma casa, e de todas há da parte dele apenas um único, curtíssimo, mas afiado diálogo. Logo esse fantasma vai se transformando diante de nossos olhos. Sua transformação não é concreta, mas simbólica: de fantasma do marido, de repente transforma-se no fantasma do tempo. Esse que está ao redor de todos e de tudo. A casa, afinal, é também uma personagem do filme. A esposa, que fora o motivo de sua volta para a casa onde moravam, um dia se vai. Novos moradores chega

A bomba, o espirro: uma resenha escrita em tempos de pandemia.

“É terrível a existência de duas retas paralelas: pois elas nunca se encontram e apenas se cruzam no infinito” . - Matilde Campilho Virgínia Woolf, desde seu quarto romance, O Quarto de Jacob, propõe uma mudança na estrutura do romance que diferente da clássica. A modernização que ela causa com sua literatura inaugura uma nova forma de encarar um texto para o leitor. Por tais motivos, Virgínia é uma autora que não apenas costuma ser, mas deve ser relida. Justifico: uma primeira leitura de Mrs. Dalloway não raro é atravessada por um espanto, um fascínio causado pela estrutura e estilo da escrita. É antes por essa experiência do que pela compreensão que o atravessamento da leitura feita por alguém que esteja iniciando seu percurso em suas obras se dá.  A forma única com que Virgínia constrói seu texto pode ser a primeira vista estranha, pois cobra  uma outra lógica para entende-lo. A primeira leitura então e a de um encontro - e esse encontro, ele se dá ou não. Muitos leitores, em suas p

Dar ao indizível um nome

Maurice, romance do britânico E. M Forster, foi escrito entre 1913 e 1914, à sombra da Era vitoriana, período marcado pelo contraste entre a modernização científica e um forte moralismo sexual devido ao fundamentalismo religioso. Por se tratar de um romance de formação sobre os anos de juventude de um personagem homossexual, Forster teve a esperteza de guardá-lo com recomendações de ser publicado somente após sua morte, em 1971. O romance não trata de um sujeito com problemas com sua sexualidade, mas um sujeito em uma sociedade que tem problemas com a homossexualidade - e seu atravessamento no romance se dá a partir disso. A era vitoriana, período que marca os anos em que o romance se passa, embora marcada por uma modernização científica, foi também um período de forte moralismo sexual devido ao fundamentalismo religioso. Nenhum ambiente da esfera social tolerava “o vício indizível dos gregos”, como é chamada a homossexualidade no romance de Forster. Maurice e Clive se apaixonam na uni

Há algo de curioso no hype

Nos últimos meses eu e muitos dos que tentam estar por dentro do que tem sido publicado e tomado notoriedade no mercado editorial, ouvimos falar sobre Uma Vida Pequena, da Hanya Yanagihara, um livro que foi finalista dos prêmios Man Booker Prize, de 2015, em 6° lugar, e National Book Award, em 5º. Um livro de capaz bonita, que estampa a  fotografia de Peter Hujar, que faz parte de uma série sobre homens e orgasmos ; um livro também longo: na edição brasileira, da Editora Record, olhamos para um calhamaço de 783 páginas; também um livro que trata sobre a dor física e psicológica, a amizade, carreira profissional e família. Em seu aspecto família, o livro merece elogio ao nos mostrar uma perspectiva de família que é entendida também formada pelos amigos mais íntimos, com os quais temos relações mais estreitas. Teoricamente, um bom livro, se levarmos em conta o que ele pretende. Entretanto, enquanto experiência literária, um livro ruim, que não desenvolve das melhores formas o

#DesafioLivrosBr: A Paixão Segundo G.H, Clarice Lispector e um breve esboço sobre o Feminismo em sua obra.

Encontro duas formas de escrever sobre A Paixão Segundo G.H (Rocco, 2009. 180 páginas), o livro que escolhi para o mês de março do #DesafioLivrosBR. A primeira é descrevendo o plano de fundo dentro da qual o fluxo de consciência se encaminha, destacando alguns elementos chave que aparecem até a ação final. Seria assim: G.H é uma mulher da alta classe brasileira (sua nacionalidade está explícita no texto), moradora de uma cobertura. É uma manhã e a empregada da casa foi embora. G.H, então, decide ir até o quarto da empregada, onde esperava encontrá-lo bagunçado, surpreendendo-se depois com a organização que ele apresenta, deixada pela empregada. É dentro do quarto que acontecem os mais intensos conflitos expressos através da narradora. A segunda, e esta é um desafio, é uma tentativa de ensaiar sobre alguns elementos que fazem de A Paixão Segundo G.H  a novela que é. G.H, segundo aponta Boris Fausto, em História Concisa da Literatura Brasileira , significa Gênero Humano. Mui