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#DesafioLivrosBR Janeiro: Caetés, de Graciliano Ramos ou Como ler ficção?




   Atualmente estou começando o #DesafioLivroBR, proposto pelo site 1001 Livros Brasileiros Para Ler Antes de Morrer, e o item referente ao mês de Janeiro é "Livro de Estreia". Escolhi Caetés, de Graciliano Ramos. Outro dia talvez eu escreva algo sobre o livro. Agora quero apenas levantar alguns apontamentos que me vieram entre minha última leitura que finalizei ontem, que foi de O Lugar Sem Limites (Cosac Naify, 2013), de José Donoso, e de minha atual, que comecei hoje.

    Eu, como muitos outros viciados (qual outro termo seria mais preciso?) em Literatura pensamos constantemente em livros e o que os circundam - seus autores, as editoras, as traduções, críticas, etc - e diante de um campo vastíssimo de tantos outros leitores donos de blogs e vlogs sobre leituras, percebi a sede atarantada pelo número de livros lidos. A-quantidade-de-livro-lidos é um pensamento que habita de vez em quando o imaginário de todo leitor compulsivo. Seja pela insuperável injustiça da vida ser muito curta (e o tempo que temos para aproveitar dela) para todos os livros que queremos ler, seja por puro impulso vaidoso, seja por pura fome insaciável, não paramos de ler. Um livro segue atrás do outro, mal tivemos tempo de digerir bem o último. Nessa, penso na onda dos canais de resenhas literárias. Eu mesmo, uma vez, pensei em fazer um desses. Mas daí a vergonha na cara bateu, e diante de tudo o que eu via, não me instiguei a ir adiante da maré do mesmo que há no Oceano Youtube: pessoas que leem livros e pouco ou quase nada tem a acrescentar além de um resumo meio torto da história do livro. Penso na possibilidade de isso se dar pela necessidade de vídeos curtos, ou, e isso é o que me assusta, no pouco aproveitamento que aquele leitor porta voz de sua leitura teve do livro. Não vou me aprofundar e escrever um artigo sobre as nuances que diferenciam os tipos de leitores.

    Mas penso no meu processo de entrada em uma nova leitura de ficção. Primeiro que é muito difícil conter os modos quando se está com muita fome diante do prato, e já falei antes que o vício em leitura é uma sede (ou fome) insaciável. No prefácio de Elizabeth Ramos na edição da Editora Record (2013) de  Caetés, de Graciliano Ramos, lemos
Caetés é um livro da cidade, da cidadezinha do interior, com a sua vida alimentada no fuxico cotidiano pelo literato fracassado, pelo marido enganado, pelo farmacêutico sórdido, pelo médico complicado, pelo promotor imbecil, pelo padre ignorante, pelo beberrão, pelas beatas, pelas prostitutas, pelo assassino inocentado e pelas mulheres histéricas. Romance de uma sociedade mesquinha, de gente selvagem, ligeiramente polida por uma tênue camada de verniz vista pelo olho irônico do observador. Imagens feias que recriam um ambiente feio e asfixiante, de sossego sufocante, que se alimenta da vida alheia, da mesma forma que os caetés se alimentavam de carne humana.

   Mesmo no caráter de um texto de prefácio, o escritor nos oferece seu estilo, e nos convida a nos deixarmos ser conduzidos por ele: é preciso entender o compasso dessa dança oferecida por quem escreve para que a gente consiga dançar junto. O excesso de adjetivos, os poucos fechamentos de frases por pontos finais, a força das imagens que o escritor nos mostra para guiar nossa imaginação, nossa abstração.  Lendo o prefácio de Caetés, sei que não lerei o último livro que li antes de começar Caetés: é outro livro, pertencente a outro período da literatura, vindo de um outro contexto socio-histórico. E estamos ainda no prefácio, na beira do precipício, ainda não nos jogamos no abismo. Abismo: há livros que são verdadeiros abismos. Neles, não se cai de olhos fechados, mas completamente abertos, os ouvidos atentos para ver as imagens, para ouvir as entrelinhas que sussuram: quem ouvir o que elas querem dizer, ganha um novo caminho dentro da obra. E muito deste processo não se faz apenas enquanto se lê. Muito dele faz parte do processo digestório que se prolonga depois de lida a última frase da obra. Embora eu possa ser um leitor que nunca esteve diante da realidade sobre a qual Graciliano Ramos constrói sua ficção, no texto temos todas as pistas para que possamos enxergar a aridez da terra refletida na aridez dos personagens.

   Sinto falta de leitores que mostrem o que há além do que é lido. Que mostre o que é lido também superficialmente, mas que tenham a paciência, a disposição (pois é isso o que falta à nossa vaidade de leitores compulsivos: paciência e disposição) para abrirem os olhos durante a queda no abismo do texto, desprendendo as tensões das ideias, sem medo de associa-las, entregando-se quase religiosamente, como um protestante que lê emocionado a vida de Jó e encontra ali uma história real, que a impacta, e se deixa atingir por algo que "aconteceu". O que nos separa é esse "quase" na minha proposta de leitura de caráter religioso: sabemos que ali o que lemos é ficção, e é, mesmo que realista, uma construção do autor através de seu processo criativo, e que a isso nos foge acreditar que aconteceu de fato, mas não nos foge nos abrirmos para nos deixarmos ser atingidos imensamente pela obra. Não que ela vá nos transformar ou melhorar ou salvar. A arte não está aí para isso. Mas está aí certamente para ser consumida, e esse consumo não precisa ser pobre se há diante de nós a possibilidade de um consumo rico.

   Virgínia Woolf é uma de minhas autoras prediletas. Acho que repeti isso ao menos uma vez em cada postagem que falo sobre ela. Acontece que ouvindo pessoas que tentaram ler alguma de suas obras e não conseguiram, deparo-me exatamente com a falta desse processo de imersão na proposta do autor. É preciso antes entender que essa imersão é um processo. O que Virgínia quis mostrar com seu estilo, com esse tal fluxo de consciência? Por que ela está ponto na cena uma mariposa que tenta relutantemente entrar através da janela fechada por sua coberta de vidro? O que isso tem relação com o texto? E Graciliano, por que tão direto em sua escrita? O que há de sua sobriedade, de seu estilo conciso com seus personagens? Por que esses tipos de personagens em seus romances? Diante de tantas situações que esses autores poderiam criar, por que foram essas as do texto que eles escolheram criar? O processo de leitura é tortuoso. Embora nunca possamos saber o que Shakespeare achava realmente de Hamlet, podemos tirar coisas além do enredo do texto. O mesmo se dá com as outras leituras. Quanto mais espaço ela nos proporciona para que a fruição possa acontecer, mais rica, a meu ver, é a obra para mim.


    Não é preciso que sejamos pesquisadores acadêmicos de Literatura para que possamos fazer uma boa leitura de um texto.  Acredito num processo de leitura criativa, onde o leitor abre um espaço de receptividade para o texto, material também de um processo criativo, construindo mutuamente  o jogo das significações. Tal espaço só é possível ser feito a partir do prazer. A partir dele podemos buscar fontes externas ao textos, estudos, críticas, textos de apoio, etc. Em Teoria da Literatura, Uma Introdução, Terry Eagleton reafirma nossas velhas certezas: "A razão pela qual a grande maioria das pessoas lê poemas, romances e peças está no fato de elas encontrarem prazer nesta atividade, Tal fato é tão óbvio que dificilmente é mencionado nas Universidades. [...] Um sintoma dessa curiosa situação é o fato de a palavra 'prazer' sugerir algo banal: sem dúvida, ela é menos séria do que a palavra 'sério'. Dizer que um poema nos é extremamente agradável parece, de alguma forma, uma afirmação crítica menos aceitável do que pretender que o consideramos moralmente profundo". Ainda assim, por mais cheio de intenções que eu possa ser, sei que cada leitor é um leitor, e que as leituras são diferentes. Isso é também riqueza. Tanta riqueza, que nos dá a oportunidade de fazermos canais no YouTube ou blogs como este para compartilharmos nossas leituras (aliás, assim como cada leitor é um leitor, cada leitura é uma leitura). Este aqui é apenas mais um texto de um leitor que tem um blog e acesso, internet e decidiu compartilhar um pouco cheio de metáforas como funciona seu processo de leitura. Por fim, voltando ao dilema da curta vida que temos diante de todos os livros que queremos ler, podemos voltar os olhos para outra perspectiva, e aceitar sem desesperos que a riqueza de nossas leituras se faz tanto dos livros que lemos quanto dos livros que gostaríamos de ler. A intenção de ler já é, por si só, valiosa. Mais vale uma leitura bem feita durante meses do que dez durante um mês. O prazer é a base sobre a qual construiremos o que o texto tem a oferecer.

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