Assim como a leitura de Antologia Poética de Drummond, referente ao #DesafioLivrosBR se mostrou muito mais longa do que eu supunha que fosse, a leitura de Todos Os Contos de Clarice também mostrou muito mais breve do que eu também supunha. Se por um lado a poesia demandou um ritmo também poético - cada poema sendo degustado e digerido em seu tempo, de modo que a qualidade ficasse resguardada diante da pressa pelo número de livros que eu, nós, desejamos ler -, os contos de Clarice se mostraram muito como uma retrospectiva de minha vida. É que a escritora está atrelada em momentos de minha adolescência com a lembrança de casas onde morei, no decorrer de minhas várias mudanças.
Durante a leitura parece que pomos nos olhos as lentes com as quais os escritores enxergam - seu estilo, pelo menos, é carregado conosco. Comigo, ao menos, é assim. E daí me vi assustado, surpreso quando descobri no meu bairro uma espécie de palmeira que tem espinhos pontiagudíssimos em seu tronco. Como se Clarice houvesse baixado em mim, surpreendi-me com a aspereza das coisas vivas. "Seiva que também é vida", escreveu Clarice em O Ato Gratuito, lembrei-me. A aspereza calma, paciente da árvore que mostra orgulhosa seus espinhos.
Notaram? São 654 páginas de Clarice Lispector. Impossível sair disso incólume.
Então quero contar eu também uma história:
Em Fortaleza eu e uns amigos um dia inventamos de fazer uma leitura coletiva. Escolhemos Clarice Lispector. Mal desconfiávamos que cada um de nós ali estava segurando o material que abriria as portas de nosso mistério. Inconsequentes diante do que a experiência nos proporcionaria, lemos. Ao fim de um dos contos, levantamos a vista, assustados, em silêncio. De repente em nós pulsava, contraindo e expandindo, como um coração, o mistério da leitura. Olhávamo-nos como se a leitura daquele conto tivesse nos despido e víssemos a nossa nudez ali exposta diante do outro. O mais surpreendente era que não nos assustamos. Como se vaidosos de nossos corpos imateriais do mistério, olhávamo-nos, sentindo. Sentir era a única forma de entender. Como uma experiência religiosa, a catarse coletiva provocada pela leitura daquelas palavras em conjunto nos esgotou de qualquer palavras que pudéssemos articular a respeito. Pensávamos sem palavras. Sentíamos, como eu disse. Ficamos assim não sei por quanto tempo, até o primeiro de nós baixar os olhos novamente para o livro, olhando-o como quem olha uma arma depois de disparar o tiro que mata. O poder de matar que tem uma arma e o poder de potencializar aquele aspecto do estar vivo que tinha a leitura. O primeiro comentário que alguém soltou eu não lembro. Sei que ninguém mais também lembra. Por algum tempo ficamos com a sensação do ponto final do texto dentro de nós, até ele se digerir por completo: para que os livros voltem a ser lidos, para que os textos voltem a ser devorados, é preciso que a experiência literária se dissipe um pouco, que reste apenas a lembrança da capacidade de seu brilho. Depois daquela reunião, que foi a primeira e última, fomos embora para lermos sozinhos em nossos quartos. Quando nos reencontrávamos é que comentávamos o que haviamos lido. Não tentamos nunca mais aquela experiência. Embora ela nos tivesse envaidecido, assustado, não tentamos de novo. Uma vez apenas foi o necessário.
Agora voltemos ao agora: a "Clarice Mito", como bem afirma Benjamin no prefácio do livro, se desnuda diante de nós em seus contos. Se a mesma internet que a transformou em pensadora com suas frases soltas, deslocadas de seus contextos nos contos conhecesse a coletânea pela primeira vez organizada por Moser - que contém textos inéditos não publicados em livros, mas em jornais - veria uma Clarice artista que - sei, sei que serei apedrejado por isso - se perde um pouco ao se aproximar da velhice; seus últimos contos se perdem algumas vezes num hermetismo pretensioso. O Moderno da Literatura Brasileira que ali tinha conhecido Clarice de Laços de Família, Felicidade Clandestina, dá lugar a outra coisa ao chegar em A Via Crucis do Corpo. Seus romances e novelas então são as coisas que a salvam, escritas à mesma época que alguns dos últimos contos. Talvez, como em Clarice tudo funciona numa metade pela técnica real da escrita e noutra metade pelo mistério que a circunda em sua produção mágica, essa mesma força oculta que a fazia escrever estivesse querendo guiá-la para narrativas mais longas e bem trabalhadas, como A Hora da Estrela, de maior qualidade que seus últimos contos. Um aspecto interessante, por outro lado, que há na coletânea é a possiblidade de uma visão panorâmica sobre a produção de Clarice. Por mais que não queiramos associar o autor a sua produção, não há como negar a idade e situação de suas personagens que acompanham também a idade e situação da própria escritora: mais perto do fim da vida Clarice escreve sobre personagens velhas, e a partir da época de se tornar mãe ela insere crianças em seus contos. Uma possibilidade interessante proporcionada pelo livro, sobretudo para os que se interessam pelos aspectos biográficos por trás das obras dos autores.
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