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Há algo de curioso no hype



Nos últimos meses eu e muitos dos que tentam estar por dentro do que tem sido publicado e tomado notoriedade no mercado editorial, ouvimos falar sobre Uma Vida Pequena, da Hanya Yanagihara, um livro que foi finalista dos prêmios Man Booker Prize, de 2015, em 6° lugar, e National Book Award, em 5º. Um livro de capaz bonita, que estampa a  fotografia de Peter Hujar, que faz parte de uma série sobre homens e orgasmos; um livro também longo: na edição brasileira, da Editora Record, olhamos para um calhamaço de 783 páginas; também um livro que trata sobre a dor física e psicológica, a amizade, carreira profissional e família. Em seu aspecto família, o livro merece elogio ao nos mostrar uma perspectiva de família que é entendida também formada pelos amigos mais íntimos, com os quais temos relações mais estreitas.

Teoricamente, um bom livro, se levarmos em conta o que ele pretende. Entretanto, enquanto experiência literária, um livro ruim, que não desenvolve das melhores formas o que ele propõe.

Entre tantos livros que estão no hype, decidi escrever sobre Uma Vida Pequena exatamente por ser um livro que foi premiado, teve uma grande divulgação, e sobretudo porque é um livro que divide opiniões quanto as suas qualidades. Nunca antes me deparei, enquanto buscava referências, opiniões tão diversas sobre um livro. Basicamente, uma parcela dos leitores não parece se importar com a narrativa pobre e de construção falha de Hanya, e se sente satisfatoriamente afetado pelos temas tão densos que são trabalhados no enredo, mesmo que de forma torta. Outra parcela, exatamente pela pobreza de construção, com suas muitas falhas, percebe que o livro fracassa em desenvolver os temas que propõe: há falhas demais na construção para que haja base para um desenvolvimento de qualidade e, portanto, não consegue causar prazer ou mesmo proporcionar a devida fruição que se espera de uma leitura, sobretudo de um romance tão extenso. Em minhas pesquisas, me deparei com o termo "torture porn", referindo-se a característica do livro saturar o enredo com inúmeras e desequilibradas passagens onde seus personagens sofrem física e psicologicamente.

Ao tentar ler, particularmente, uma das maiores falhas que encontrei se dá em relação à falta de lógica entre um dos personagens principais, Jude, que após um acidente ou algo que o valha, durante sua infância, fica marcado para sempre por sua deficiência física, e precisa de muletas para se locomover. Ele, não bastasse seu trauma causado pelo episódio ocorrido durante a infância que o fez deficiente, que durante todo o livro é mantido exaustivamente em segredo pela autora, é um personagem que também perde parentes, amigos, e sofre de fortes dores físicas e tentativas de suicídio. Enquanto de um lado temos um narrador que nos mostra um Jude passivo diante da vida, sofredor e resignado em seus pensamentos devido a seus traumas e perdas, por outro lado, seus amigos e outros personagens identificam nele uma figura inteligente, carismática e encantadora. Não há uma lógica entre a tentativa da autora de nos fazer sentir pena de Jude e a perspectiva que os outros personagens tem dele.

A linguagem do livro é simples, repleta de lugares comuns, e mantém a técnica dos bestsellers: revesa passagens tristes com passagens divertidas, de modo que não nos sintamos saturados por passagens muito extensas onde só há sofrimento.

Por fim, é interessante observar do ponto de vista da crítica dos gostos a imensa divisão de opiniões sobre o livro. Eu, particularmente, sou do time dos que não gostaram e que, inclusive, não se deu ao trabalho de terminar a leitura para saber que minha opinião não iria mudar. Tenho a filosofia de que há livros demais para serem lidos, pouco tempo, e que não devemos sentir remorso por abandonar aqueles que, diante de nossas experiências enquanto leitores, não nos atingem como poderiam atingir. Há outros que ficam do outro lado, e que mesmo reconhecendo a qualidade pobre da narrativa, por vezes enfadonha, numa constante tentativa de nos agarrar nos braços, conseguindo por algum tempo e depois nos deixando entediados de novo - mesmo assim se sentem atravessados pelas questões que, independente de qualidade literária, são caras a todos nós: a dor, a amizade, a família, o futuro.

Comentários

  1. Adorei demais o texto e a coragem de discutir o hype, amigo!
    Talvez seu relato instigue a curiosidade de mais leitores em torno do 'Uma Vida Pequena', mas o risco de comprar e ler um livro de qualidade duvidosa será todo deles. rs

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